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Texto: Elton Pila

Foto: Yassmin Forte

Edição 78 Março/Abril| Download.

Boroma – Da água e da pedra

A Igreja na terra nua, erguida no peso das pedras sobre a matéria vegetal da memória. Mas uma voz resiste, como uma baleia que emerge, um espasmo à superfície, para mostrar o caminho do fundo do mar. A terra tem outros deuses, as mãos em calos de indizíveis magias esfarelaram, no nocturno silêncio, as primeiras tentativas de construção da Missão como giz que não resiste ao dedo da água. A terra tem outros deuses, conhecedores da coreografia das árvores, do ritmo dos ventos, do calor das labaredas que incendeiam o ventre do rio. E do caminho das nuvens, sempre tão próximas de Deus. Era preciso decifrar a composição dos búzios, afagar a terra quente, ouvir a voz dos espíritos. O resto é história no rasto da pedra que parecia ceder ao sussurro do vento. Mas não cedeu e ainda bem.

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Fundada em 1885, a Missão de São José de Boroma foi erguida pelos artesãos forjados nas oficinas criadas para servir às obras e por isso a Deus, “gente da casa” em missão divina, dirigidos pelo Padre Luís Gonzaga Baecher, um bávaro com curso de arquitectura e belas artes.

O caminho é feito numa subida íngreme, com árvores atravessadas pelos raios de sol a desenharem silhuetas na terra. No horizonte, o Zambeze se insinua, este grande corpo de água, cor de noite, que se arrasta na mansidão das pernas cansadas de grandes maratonas. Foram cinco geografias (Zâmbia, Angola, Namíbia, Botswana, Zimbabwe), cada leito com língua própria, até chegar aqui, como uma serpente em encantamento a perseguir o som do mar. Cerca de 2 574 km depois da nascente, o rio deixar-se-á afagar pelo grande lençol Índico.

Mas voltemos à Boroma, à Igreja. Se o exterior, com duas torres e remate a coruchéu com a geometria do cilindro real, se impõe como um cisne no alto da colina; o interior é um abrir de asas. Um pincel parece ter colado azulejos à parede e ao tecto, como se emprestasse as cores de uma nova vida, como se a parede e o tecto deixassem de ter a função primeira, de proteger do sol e da chuva, dos ventos e das tempestades, dos animais e dos homens, dos outros homens. E, de repente, se tornasse um grande quadro com história própria. Ao espanto da beleza acresce-se o do trabalho anterior que a construção da beleza parece ter exigido. E então lembramos de “A um poeta” de Olavo Bilac, que também vale a um peintre-artist, entregue ao sacrifício dos dias, o corpo encharcado de suor, as mãos dormentes em nome da beleza da verdade solitária. Pensamos em Jorge Lindhor, o peintre-artist das paredes interiores, como pensamos em Sísifo, mas num Sísifo feliz – como disse ser necessário imaginar Albert Camus. Quantas viagens foram necessárias? A pintura não permite erros, não há “delete” ou “undo”, depois do pincel riscar a parede. Também por isso o traço começa fino e se vai adensando, na coreografia das mãos, em contínuas idas e vindas. Foi a sentença de Lindhor, cumprida até cair morto depois do pincel roçar a parede pela última vez no arco-cruzeiro, no centro do tecto com o movimento de nave. Missão cumprida, a parede vestida de cores que contam histórias e estórias, que agora se renovam, com o trabalho de restauro que tem estado a acontecer pela Igreja toda. Um grande exemplo, quando vários edifícios seculares parecem existir-e-desistir corroídos pelo sal do tempo.

Reportagem realizada com apoio logístico da Escopil

Como chegar

A partir de Maputo, pode voar até a cidade de Tete, com a LAM. Depois, é uma viagem de cerca de 25 km de carro até Boroma.

O que fazer

O caminho para Boroma é tão fascinante quanto o destino, com os embondeiros que enfeitam as paisagens, os cabritos que parecem omnipresentes e um rio que corta a estrada. Mas pode também navegar pelo Zambeze ou, simplesmente, assistir ao pôr-do-sol nas margens do grande rio.

Onde comer

Há algumas tascas ao longo do caminho, com vários pratos. Mas não pode perder a oportunidade de experimentar o cabrito assado, kongwe ou peixe pende nas infindáveis variedades de preparo.

Onde dormir

Com uma variedade de oferta de hotéis, pode sempre escolher algum no centro da cidade, como Inter Tete, Ferry Sun ou VIP Executive e, depois, aproveitar a viagem até Boroma.

Cuidados a ter

O caminho até Boroma exige um carro 4×4. Há também vários cabritos pelo caminho. Tete é uma cidade quente, protector solar e uma garrafa de água são sempre necessários.

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