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Mia Couto Convida: Memórias Do Idai “A Chuva Estava Morta”

Mia Couto Convida: Memórias Do Idai “A Chuva Estava Morta”

Pela mão de Dany Wambire, escritor e editor da Fundza, baseada na cidade da Beira, percorremos a colectânea “Memórias do Idai”, maioritariamente composta por novos e jovens autores oriundos de vários pontos do país.  É pelas vozes destes criadores que revivemos uma das maiores tragédias do nosso tempo, o ciclone Idai que abalou fortemente a zona centro de Moçambique, há sensivelmente um ano e meio.

Convido a todos a ler as 26 histórias desta colectânea, pois nenhuma coisa permanece se não for convertida numa história. A realidade só começa a ser real quando nos chega através de uma ficção. E nós, aqui em Moçambique, pensamos que só tem direito a ter passado quem foi herói, mas herói somos todos nós que nos levantamos todos os dias e enfrentamos problemas e dificuldades. Muitos desses heróis que nós temos não estão vivos.  Estão nas placas das ruas, mas, se perguntarmos quem eles são, ninguém os conhece. Eles só podem ficar vivos se se converterem em histórias que nos possam seduzir, com as quais podemos namorar. E certamente que com estas iniciativas de jovens como Dany Wambire e os escritores que abraçaram este projecto, os eventos extremos das mudanças climáticas passarão a ter mais importância e a chamar a nossa atenção.

MEMÓRIAS DO IDAI “A CHUVA ESTAVA MORTA”

EXCERTOS

A DONA ABRISTA E O CUNHADO COMISSIONISTA francisco raposo “Saliva, boca, suor, desejo, medo, prazer, movimentos, homem e mulher, do lado de dentro. Vento, chuva, árvores, quedas, gritos, fugas e destruição, do lado de fora. Do lado de dentro, os giros do ciclone eram feitos pela mulher, e do lado de fora, só se ouviam respiros fundos de serpentes no ninho. De resto tudo era mudo. Tudo era surdo. Até os barrotes e as chapas voarem, até uma parede desabar por cima dos dois, calcando-os, até que a morte os uniu para sempre.”

CHEGUEI CHEGANDO Ruina Carim

“(…) Abri os olhos e suguei as energias que sobravam do meu ser, como se suga o néctar da laranja. Muitos parabéns, tinha amanhecido.

– Mama acoda, mamaa!

– Temos que limpar essa ferida.

Me sentei. Havia terminado o filme? Nem havia presenciado o momento dos créditos, onde se diz: «direccionado por fulano com apoio de fulano».  Mas, com certeza, os beirenses tinham sido os protagonistas.

Quando saímos da casa, o meu marido segurava o miúdo pendurado em seu pescoço, o telhado da vizinha tinha perdido a sua forma, em volta havia um oceano de pessoas melancólicas, com olhos vazios, estômagos roncando e pés descalços, pisando água que alcançava os joelhos.”

O FOGO DA ÁGUA E O PESO DA FOME Otildo Guido

“A chuva estava morta. Deitada no chão da nossa casa. Os poucos livros da Khunda pesavam um pouco mais. Khunda acreditava que aquela chuva era um poeta perverso acrescentando alguns versos líquidos nos poe- mas acabados dos nossos poetas favoritos.

Eu acreditava que aquilo era coisa de os papéis terem água demais.  Nada nos dava graça de discutir.

O rádio, a única fortuna que papá conseguira salvar do fogo frio das chuvas, nos dizia dos brancos que davam comida aos mortos. Meu pai não queria saber de nada que vinha de depois dos mares.

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