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Texto: Leonel Matusse Jr.

Foto: Ricardo Franco

Edição 74 Jul/Ago | Download.

Encontros Índicos com Deltino Guerreiro e Jossefina Massango – Arte para existir

Com uma moeda de mil meticais, no final da década 90 e princípio dos anos 2000, num vilarejo de Montepuez, distrito de Cabo Delgado, Deltino Guerreiro e os seus amigos pagavam o acesso a sala de cinema improvisada. Ouviam músicas noutras ocasiões. Eram momentos alegres. E, no negrume da noite, a volta da fogueira, entre o cantarolar de grilos e o crepitar da lenha que mantém a luz, ele e a sua malta, num meio de agricultores sem energia eléctrica, impunham as suas vozes e gargalhadas, a recordar cenas cinematográficas e músicas que tinham ouvido e visto na vila.

Inconscientemente, seguindo as tais linhas tortas que escrevem as nossas histórias e estórias, a música determinou o rumo da sua vida, já em Nampula, para onde foi morar depois de cumprir os ritos de iniciação na adolescência. “Fiz, é cultura, é costume, para nós é bíblico (risos)”, Deltino conta entusiasmado, observando que, ao contrário da imagem de sofrimento dos ritos, vê a experiência como uma forma de educação. “É uma lição importante, talvez tenhamos de rever questões de saúde, mas educa”.

Integrou grupos de rap para fazer coros. Incentivado por uma tia que viu nele a luz, se mudou para Maputo a fim de tentar uma carreira sólida e com mais possibilidades de dar certo.

Aos 31 anos, esses pedaços de memória permanecem nítidos em Deltino Guerreiro, compositor e intérprete, autor dos álbuns “Eparaka” (2016) e “Rokotxi” (2022). Trabalhos nos quais se evidenciam as suas raízes macuas, o canto árabe com temperos de Milton Gulli, no primeiro e mistura de sonoridades de outras geografias que influenciaram ao próprio Guerreiro.

Sentado diante da actriz de Cinema e Teatro, docente na Escola de Comunicação e Arte e Directora Artística do Cinema Scala, Josefina Massango, numa conversa improvável, propósito deste Encontros Índicos, ele vai desfiando episódios que, ainda que não tenha consciência, definem a sua trajectória.

É no palco que Jossefina Massango se sente plena, talvez pelo desafio do momento, da circunstância de ver no semblante da audiência a reacção.

A proposta desta junção resulta de uma parceria entre a Fundação Fernando Leite Couto e a Índico, revista de bordo das Linhas Aéreas de Moçambique, com o objectivo de cruzar artistas de diferentes disciplinas e gerações numa conversa informal.

Já a entrar para os trinta anos de carreira, Josefina Massango, que se iniciou no teatro profissional casualmente na Casa Velha, se considera sortuda. Recorda dos primeiros estímulos, na Escola Primária 24 de Julho, com vista para o mar, no Alto-Maé, nas actividades culturais.

“Dançávamos, cantávamos e declamávamos poemas”, recorda, contrapondo que “hoje danço mal, mas necessito dessas outras disciplinas para ser completa na representação”.

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Adolescente, jogadora de basquete no Clube de Desportos do Maxaquene, a busca de si própria, frequentava salas de teatro. E daí para o ser actriz foi questão de um espectáculo: “A Boa Alma de Setsuan”, escrita por Bertolt Brecht, representada no mítico Teatro Avenida. “Contactei Mário Mabjaia e Machado da Graça para me admitirem. Estavam a preparar a peça “O Osso” e o Machado deu-me a ler a fala de um personagem, a Rebeca, que era a esposa de um chefe de aldeia que quer comer sozinho o seu naco de carne, uma comédia. Fui aprovada e daí foi dar azo a imaginação”.

Em “Eparaka” (2016) e “Rokotxi” (2022) evidenciam-se sonoridades de outras geografias que influenciaram o prÓprio Guerreiro.

Desse episódio a esta parte, foram vários palcos, 20 anos dos quais em Portugal, onde se formou em Teatro e fez filhos.

Josefina Massango faz também Cinema, sendo que as últimas longas-metragens já estreadas foram “Ruth” e “Mosquito”. Tendo, no primeiro, o papel de protagonista, enquanto mãe de Eusébio, um dos melhores jogadores de futebol de sempre, nascido na Mafalala.

É no palco, entretanto, confessa ao Deltino Guerreiro, que se sente plena, talvez pelo desafio do momento, da circunstância de ver no semblante da audiência a reacção. E quem a vê entrar no palco em “Chovem Amores na Rua do Matadouro”, espectáculo que está em tournée por Portugal, pode confirmar. Entra em uma carrinha de rodas empurrada pela filha (interpretada pela actriz Joana Mbalango), é uma mulher adoentada pelo machismo e  ninguém pode dizer que não esteja doente. Por isso quando diz, já a caminhar por pés próprios, pouco antes da cortina fechar, “nós somos mulheres, somos como essa chuva., tombámos, mas não caímos nunca”, soa a um grito de liberdade.

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