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Texto: Elton Pila

Fotos: Yassmin Forte

Edição 74 Jul/Ago | Download.

Salamanga – Na outra margem do rio

O rio Maputo corre na pressa de ser baía.  O castanho que nos deixa ver é a revelação da terra que leva dentro. O rio olha para baixo, como se ignorasse o azul que tem extensão nos mares sempre espelhos do céu.

Mais de cem anos atrás, às margens do rio estava Kalidas, quase um homem, quase um deus, um santo, o santo restante. Deixou-se ficar, pernas cruzadas, as mãos sobre o joelho, olhar contemplativo, meditativo. Contam-se milagres dessa aparição. Vestiu terras distantes do rio de água, parakulungwanas de adeus à seca. E depois foi a voz que fez nascer o templo. Esfumou-se envolto ao mesmo manto de mistério da sua chegada, a caminhar sobre as águas, uma pluma ou Jesus. Pouco se soube do seu passado, como pouco se soube do seu futuro, apenas daquela eternidade breve. Hoje, dentro do templo, há um busto de um “homem barbudo” em posição meditativa, Kalidas, o santo que fez nascer o templo de Salamanga como a pedra sagrada fez nascer o templo da Ilha de Moçambique.

O templo, o segundo em Moçambique (e pensa-se que também em África), começou a ser erguido em 1908 pelas mãos de Kalane Megdji, avó do escritor Calane da Silva (1945 -2021), quando Salamanga tinha apenas dezenas de indianos dedicados ao comércio nas cantinas que ainda hoje marcam a paisagem local.

O chão tem a cor vermelho-terra, às paredes estão incrustados pedaços de azulejos coloridos, como se reunissem toda energia do mundo. E no cimo quatro pavões, o arco-íris de plumas, a ave do deus Krishna, iluminação de consciência, transformadora do negativo em positivo, do sofrimento em beleza, do mal em bem, o milagre da vida.

Ganesha institui o elefante no sagrado do hinduísmo. E a Reserva dos Elefantes não fica distante de Salamanga. Isto anda mesmo tudo ligado.

Chandracin Lala e a esposa Rachila Manilal estão no templo para um ritual que se repete desde sempre. Antes das estradas e das pontes, quando um batelão à manivela os colocava, vindos da Catembe, na outra margem do rio Maputo. Fazem promessas ao futuro, pedem bênçãos, aos deuses, às árvores, aos animais. “Deus está em tudo”, dizem-nos. Também por isso regam a árvore sagrada no pátio, que cresce em uma verticalidade militar, como se quisesse levar os pedidos de benção aos ouvidos de Deus, sem mais atalhos. Há dentro do templo, um espaço de adoração a Ganesha, corpo de homem, cabeça de elefante. E a história desta metamorfose podia ser trágica, se não fosse sobre os milagres do arrependimento. Ei-la pela voz de Chandracin: “sem saber que se tratava do filho, o deus Shiva decepou a cabeça de Ganesha.

No cimo do templo, quatro pavões, o arco-íris de plumas, o milagre da vida.

Quando soube da mulher, Parvarti, de quem se tratava, mandou-lhe trazer a cabeça do primeiro ser vivo que encontrasse pelo caminho para voltar a dar vida ao filho. Quis o destino que fosse um elefante. E o pai prometeu que, apesar da transfiguração, seria sempre adorado. Ganesha é sempre o primeiro a ser lembrado em todas as cerimónias do hinduísmo, simboliza inteligência”. E assim se institui o elefante no sagrado do hinduísmo. E a Reserva dos Elefantes não fica distante de Salamanga. E não é estranho que Salamanga seja também nome de uma povoação na Índia. Isto anda mesmo tudo ligado.

Mas a história do nome desta Salamanga chega pela voz de Edmundo Santaca (n.1947). Tem uma rosa no casaco e uma bengala a apoiar-lhe os passos, o que sugere o ar aristocrático de um descendente da família real, Santaca, a que pertence. No original, conta, seria Sialamanga, que teria sido mandado para ser senhor daquelas terras pelo pai, o chefe tradicional Maputo, o mesmo que deu nome ao rio e a cidade. “Os portugueses, por não conseguirem dizer Sialamanga, chamaram Salamanga”, diz-nos entre os gritos dos feirantes de rua na Vila.

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O cheiro do pão invade a rua. A padaria, que existe desde 1950, encontra-se aos fundos de um edifício de 1895 que já funcionou como escritório de Transportes Fluviais. Na padaria, sempre nas mãos da mesma família, não há fornos eléctricos ou a gás. É pão à lenha, as paredes engolem o trigo e devolvem o pão. “A obrigação é manter o pão como está”, contam-nos Basílio Jaminadas e Maria Otília Jaminadas, o casal proprietário da padaria. São mil pães por dia, todos os dias. E sempre com a mesma fórmula: trigo, água e sal. E o peso para saciar a fome do mundo.

Como chegar

Salamanga fica a 119 km da cidade. Uma viagem de carro permite que aproveite a paisagem.

O que fazer

Ver o rio Maputo de perto. Com sorte, ainda emergem hipopótamos. Visitar o templo hindú e estar em contacto com uma outra energia. A Reserva dos Elefantes não fica distante, pode sempre visitar.

Onde comer

Pode sempre comer nas tascas da vila e ter experiência de conversas locais. Mas experimentar o pão de Salamanga é irremediável.

Onde dormir

A viagem de Maputo a Salamanga pode ser feita em poucas horas. Mas pode sempre dormir nos hotéis da Ponta de Ouro ou Ponta Malongane.

Cuidados a ter

O rio não permite banhos. Estar atento ao trânsito no meio do caminho, sempre podem passar manadas de bois.

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