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Texto: Elton Pila

Fotos: Ricardo Franco

Edição 70 Nov/Dez | Download.

Jacira Ferreira – Aprender a levantar

 Um feixe do laranja solar ainda se impõe no céu que já se começa a deixar escurecer. Do outro lado, um traço delgado de lua anuncia a noite. É sexta-feira. A entrada do Clube Naval torna-se movimentada, homens e mulheres seguem ao restaurante para o início do fim-de-semana depois de uma semana longa de trabalho.

A judoca Jacira Ferreira, que também teve uma semana longa de trabalho como informática em uma instituição financeira, também acaba de entrar, para se divertir da maneira possível. Está no ginásio a projectar o colega para o chão amolecido do tatami. Ele cai e levanta, cai e levanta, cai e levanta até que a sessão termine. É apenas um treino, que é sempre esta antecâmara para os campeonatos nacionais e internacionais de judo. O judo é sobre projectar o adversário para o chão, mas muitas vezes também sobre quantas vezes quem é projectado se levanta. Uma lição do desporto que Jacira leva para a vida.

Chegou ao judo por estes caminhos estranhos que costumamos chamar destino. Estava em período de férias da natação – modalidade a que se dedicava – e foi acompanhar uma amiga que considera irmã para os habituais treinos de judo. “O treinador convidou-me para uma aula experimental, fiz e gostei”. Voltou outro dia, outro dia e outro dia até que se passaram três meses e já estava no tatami para o primeiro combate no campeonato da cidade de Maputo. A primeira adversária foi uma atleta que já andava no judo há vários anos. Mas no que se pode chamar sorte de principiante materializada nesta ingenuidade de quem não conhece o sabor da vitória e nem da derrota ganhou a primeira luta. “Foi uma surpresa e um choque. Todos os treinadores ficaram surpreendidos”. Perdeu os combates seguintes, mas o primeiro foi suficiente para saber que o lugar dela era ali, nos limites do tatami, ainda que tivesse de experimentar a derrota outras vezes. E é isso que diferencia os grandes dos pequenos, não se deixar definir pelos momentos maus.

Foi considerada, na Gala da Mulher no Desporto, uma porta-estandarte do judo no feminino em Moçambique

No campeonato seguinte, que também valia para qualificação para os africanos de cadetes e juniores em Botswana, conseguiu um dos quatro lugares qualificativos femininos. Com seis meses de judo, chegou a primeira internacionalização. Foi em Botswana, perdeu as duas primeiras lutas que a impossibilitaram de celebrar mais do que a participação. “Soube bem representar a bandeira de Moçambique” e tinha apenas 14 anos. Tudo aconteceu entre 2012.

No ano seguinte, 2013, sagrou-se campeã nacional e qualificou-se para o africano que se seguiria e que não pôde ir por falta de financiamento, o que se repetiria também em 2014, 2015 e 2016. Mas continuou a treinar, dentro e fora do tatami.

Voltou aos campeonatos internacionais nos Jogos da Zona VI na Suazilândia – hoje Reino do  Essuatíni – que estava inscrita nas categorias de cadetes e juniores. Ficou em terceiro lugar nas duas. Tornava-se então a número um na sua categoria em Moçambique. Mas o africano que seguiu foi o pior de que tem memória. Chegou com sete pontos na testa de um embate que teve com um colega em sessões de treino, a meio do primeiro combate e bateu com a cabeça no tatami, desmaiou. Mas acordou pouco depois e teve ainda de combater. Perdeu a poucos minutos do fim, uma lição de resiliência.

Chegou ao SKASA em 2016 para ser medalhada e ficou com a de prata. Tornavam-se então habituais as vitórias e as medalhas ao nível dos campeonatos da região. Em 2019, no Open de África, em Yaoundé Camarões em que também participaram atletas europeias, ficou em terceiro, a mesma posição do ano seguinte em Dakar, Senegal. Continua a procurar as medalhas nos mundiais da modalidade, que já participou em quatro e de um ouro nos africanos. Mas já faz parte do Top 6 africano na sua categoria e foi considerada, na Gala da Mulher no Desporto, uma porta-estandarte do judo no feminino em Moçambique. Um lugar que se chega aprendendo a levantar. “Aprendo mais quando perco”. As vitórias são celebradas, mas são sempre mais efémeras. As derrotas incrustam-se à memória, colocam-na a pensar, a ver o vídeo do combate, a procurar o erro, como falhou, o que falhou e o que fazer para não voltar a falhar. “Se cais dez vezes, tens de levantar onze”.

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