Niassa Goddam
A inauguralpercepção que nos consome, quando o avião está para pousar em Lichinga, é a infinidade de terra e palhotas dos noticiários da TV. Quando o avião refreou no alcatrão, a sensação que eu tinha se viurazoável, a gente era mesmo diferente. O aeroporto da cidade é um pedaço de aeroporto, e perto da torre de controlo, no primeiro piso, numa varanda diminuta, cerca de cinco dezenas de pessoas acenavam aos passageiros. Nunca antes tinha tido uma recepção igual.
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Era a minha primeira passagempor Niassa e não esperava, por conta dos relatos, encontrar grande urbanidade. Niassa é a maior província de Moçambique, localizada mais a noroeste e sem o sol e o sal que caracterizam o país. A ausência e a inconstância de infra-estruturas dá nas vistas, a densidade populacional é a menor do país e, a terra, alaranjada. A cidade assemelhou-se-me aos aglomerados do Velho Oeste, com uma longa avenida principal, poeirenta e com os saloons e o comércio dos dois lados.
Durante uma hora procurei por onde me acomodar; não pretendia luxo algum, queria ficar perto de pessoas, dos cafés e dos bares. Com pouca excepção, as hospedarias pareciam ter nascido do mesmo ovo. Acabei por ficar numapousada chamada “Benilde”, a escassos metros de duas universidades, dois bares, uma pastelaria e o mercado central.
Lichinga não tem uma rede de transportes urbanos. Uma vasta nuvem de motorizadas fazia de cápsula de teletransporte. Por todo o lado, nas esquinas, em pontos aleatórios, os moto-taxistas estavam prontos para “ganhar tempo”. As deslocações custavam, em média, 50 meticais. “As pessoas já estão acostumadas”, disse-me o guarda da hospedaria. “Táxi!”, chamou ele.
Naquela tarde, decidi almoçar num restaurante que me tinha sido indicado, o “2+1”, que estava cheio por conta de uma formação que acontecia na cidade. Pedi uma bebida e esperei por uma mesa. No fim, ficou o restaurante vazio. Comi um prato delicioso de peixe com legumes. Choveu bastante depois. Para terminar a noite, vendi alguns livros e fechei a programação para ir ao Lago Niassa no dia seguinte.
Há, no centro de Lichinga, cerca de quatro pequenos prédios, velhos e desbotados como o são os vigilantes do tempo e da memória. Um desses edifícios, o “24 de Julho”, que se parece com uma nave espacial, uma mistura de círculo e trapézio e cheio de janelas (a olharem para o futuro), acolhe um grande conjunto de lojas. É uma construção única e o comércio devolve-lhe o fôlego.
A viagem até Metangula durou cerca hora e meia. À medida que as infra-estruturas de cimento iam escasseando, a natureza acontecia com fulgor. A estreita via de asfalto era somente um fio perdido entre os outeiros, a vegetação nativa e o céu de chumaços cinzentos. Surpreendentemente, há uma economia importante de plantações de pinheiros e eucaliptos em estendidos quilómetros.
Do alto de um penhasco, o Lago Niassa parecia um mar. Um mar de mercúrio. De perto, o mar era uma enorme ágata (ou seria turquesa) movediça, ora azul, ora verde. A sua margem é constituída por rochas enormes, arredondadas, e, pelo menos até à Praia de Chuangua, algumas dezenas de embondeiros pareciam protegê-la ou patrulhá-la. Apanhei duas pedras e emoldurei o mar na lembrança. Da janela do carro, perto da Base Naval, imaginei aquelas águas mornas nos versos da Glória de Sant’Anna.
Nos últimos dias, tomava boa parte das refeições no Restaurante Chambo (“Chambo”, o peixe do Lago, é nome dado à tilápia local), que fica na FENI – Feira do Niassa. A cozinha, sempre a cargo da Sra. Argentina, oferecia guisados, caldeiradas, peixes e carnes com um primor e sabor à masterchef. Até o frango tinha um toque muito especial.
Há algo que se nos desconstrói em Lichinga, a terra, as gentes e o clima. A terra, sulfúrea, que lambuza as roupas, as casas, a alma. A Fátima, a moça que zelava a casa de hóspedes, sorria: “Acostuma-se!”; as casas, com o tempo, ficam pintadas de ferrugem, como se fossem antigas; e a alma, oh!, a alma fica insatisfeita.
No verão, Lichinga chove quando bem entende. Desponta com sol e, por volta das nove horas, chove de forma tresloucada. Faz lama. E sai outra vez o sol. Aquece. A lama petrifica mas pode sempre chover de noite, sem aviso. E depois fazia frio. Em Lichinga, desconstruí-me.
Eu ouvia a Nina Simone quando nasci em Lichinga! “Niassa Goddam!” Na manhã seguinte estava eu outra vez sentado nas nuvens.
Edição 85 NOV/DEZ| Download.
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