Menu & Search

Texto: Leonel Matusse Jr.

Foto: Yassmin Forte

Edição 71 Jan/Fev | Download.

Encontros Índicos com Elvira Viegas e Horácio Guiamba

Tempos cruzados

 A vida é feita de encontros e desencontros, cantou um poeta já velho, embriagado com o tempo e todas as suas vicissitudes. Elvira Viegas e Horácio Guiamba são a prova de que o poeta não estava equivocado. O primeiro encontro de ambos foi com as suas obras. Viegas na Música e Guiamba no Teatro.

Não estão no palco, onde estamos habituados a vê-los, mas na Biblioteca da Fundação Fernando Leite Couto, que as vezes também é transformado em palco. Ali pisaram no play para reproduzir alguns episódios da obra que são as suas vidas numa conversa descontraída, como sempre pretendem ser estes improváveis Encontros Índicos, produzidos pela Fundação e a Índico, Revista de bordo das Linhas Aéreas de Moçambique.

As fotografias que Yassmin Forte mostra pouco antes de a conversa iniciar revelam um Horácio tímido, incapaz de uma pose. Como é que um actor de Teatro e de Cinema teme uma máquina? Numa entrevista recente, publicada no “Mbenga Artes e Reflexões”, disse que “no Teatro tudo é grande”, fazendo alusão ao facto de a câmara de fotografar estar mais próxima, quando numa sala está tudo mais distante.

“Eu cresci a ouvir a Elvira”, comentou Horácio Guiamba, agora com 40 anos, depois de já terem falado sobre esta pandemia mutante que mudou as contas do mundo, a contar que acompanha a cantora e intérprete de 66 anos – a conservar a aparência ainda jovial – desde a infância.

Mal sabia o actor, agora docente do curso de Teatro na Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, que a Companhia Gungu, para a qual entrou em 2000, tinha tido a orientação de Elvira Viegas para conseguir a sala que actualmente pertence ao grupo.

Elvira Viegas conta mais de cinco álbuns na discografia, nos quais explora questões sociais.

Num dia, no início da década 90, na baixa de Maputo, a cantora cruzou com Gilberto Mendes e Cândida Bila, pouco depois de terem deixado o Mutumbela Gogo, com vontade de iniciar o seu próprio projecto. “Dei indicações do que escrever e disse que deviam remeter a carta a Lilia Momplé, que estaria mais sensível a causa”, conta Viegas, com os olhos de água de orgulho por não ter errado na sugestão. “Cuidaram bem do espaço e agora estão com todo o edifício”.

Elvira até emprestou as suas mãos, não como compositora, mas costureira de peças de roupa para o figurino de alguns espectáculos.

Ao retomar a palavra, sempre hesitante no embrulho da sua timidez, a procura da palavra e da forma de tratamento correcto, Guiamba conta que desde que se conhece está no Teatro. Na infância, recorda, a mãe frustrou o seu sonho de ser jogador de futebol, que praticava no campo do Bagamoio, bairro periférico de Maputo, onde cresceu, deixando de lado a tarefa de vender na banca da mãe, no mercado. Quando a senhora fosse “guevar”, este termo usado para designar as compras a grosso para depois vender a retalho, cabia a Horácio abrir a banca. Mas, no retorno, ela se apercebia que o miúdo estava descamisado com a sua “malta” a correr atrás da bola.

Horácio já trabalhou com o Mbeu, Mahamba, fez radionovelas, filmes e spots publicitários. Mas assume que é no palco que se sente actor.

Em duas décadas de carreira, Horácio já trabalhou com o Mbeu, Mahamba, fez radionovelas, filmes e spots publicitários. Mas assume que é no palco que se sente actor, embora já tenha assumido: “ainda tenho medo do palco”.

Elvira, uma das vozes femininas consagradas da música ligeira moçambicana, que já ganhou vários prémios Ngoma, o mais antigo certame de música moçambicana, organizado pela Rádio Moçambique, olha para o presente com alegria.

Tendo iniciado a carreira numa altura em que os artistas eram vistos como marginais, na ignorância de que a Arte é apenas para mero lazer, hoje sente que há uma mudança de mentalidade por parte dos artistas, agora também mais preocupados com a identidade.

“Sinto que a nossa música começa a ser original. Durante muito tempo, ouvimos três músicas de jovens diferentes e, além da voz, nada se diferia, a melodia era mesma e estrangeira”.

No mesmo fio, a recuar para os cinco anos anteriores a pandemia, Guiamba observa que, no Teatro, havia uma tendência de melhoria. “O gráfico estava a dar bons sinais com o surgimento de vários festivais, novos grupos”, comentou. Mas a qualidade, assume, ainda é uma questão que precisa ser trabalhada, o que levará o seu tempo.

Horácio Guiamba, entretanto, não acre1dita na transição do Teatro para o digital, como vários grupos e centros culturais tentaram de modo a garantir que as actividades artísticas não parassem com a pandemia. “O Teatro, para mim, é ali, no imediato, na pele, na adrenalina do erro e do acerto”.

Se até ao dia da conversa, Elvira Viegas, que conta mais de cinco álbuns na discografia, entre os quais “Hora chegou”, “Xikalawito” e um Best Of, nos quais explora questões sociais, não tinha voltado aos palcos, Guiamba acabava de fazer um dos maiores espectáculos de Teatro do ano passado, “Chovem Amores na Rua do Matador”.

Na peça adaptada por Mia Couto de um conto que co-assina com José Eduardo Agualusa, impresso no livro “Terrorista elegante”, o actor vestiu o protagonista Baltazar Fortuna. “Estava com saudade do palco”, confessou.

A gargalhada partilhada é melhor, reagiu Elvira, e o Teatro de sala não pode morrer. “É bom ver que a juventude está a despertar para o que realmente importa, a arregaçar as mangas para dar o seu contributo ao país.

Em jeito de fecho, voltamos ao princípio. Horácio, que fica tímido para a câmara, depois de já sentado pergunta a Elvira: “Qual o segredo para a jovialidade?”. Resposta: “A forma de estar e ser, disciplina própria, permitir-se ter uma vida saudável. Eu durmo a horas, só perco noites quando tenho concertos e é um sacrifício”.

Edição 71 Jan/Fev | Download.

0 Comments

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.