Ungulani Ba Ka Khossa – Um comboio carregado de escombros do passado
Nós não escolhemos o nosso trajecto literário. Ele é que nos leva às albergarias – termo quase em desuso – desta vida marcada por actos e cenas imponderáveis.
Lemos a última página d’“Os Sobreviventes da Noite” (Cavalo do Mar, 2021) e pensamos na voz cortada de Penete a insistir em regressar para pegar a sua gaiola, depois de saírem da grande noite que são todos os dias em todas as guerras. A gaiola é material e metafórica, a caixa de arrames a enclausurá-lo no passado. E a voz de Severino, o mais experiente do grupo das crianças-soldados, aponta o futuro como a mão da criança no ombro do pai na estátua de Pierre Goudiaby na colina gémea de Dakar.
Naquele último diálogo, naquela troca de frases a insinuar o oásis depois do deserto de sangue, temos a imagem maior da Literatura de Ungulani Ba Ka Khosa (n. 1957), um comboio carregado de escombros do passado a apitar quando nos vê a atravessar a linha. Como ele disse numa entrevista ao companheiro de palavra Marcelo Panguana, naquele livro qu’é uma celebração de amizade “Os Peregrinos da Palavra” (Alcance, 2018), a história, maiúscula ou minúscula, só o interessa como pretexto para o presente. “Nós não escolhemos o nosso trajecto literário. Ele é que nos leva às albergarias – termo quase em desuso – desta vida marcada por actos e cenas imponderáveis’’, isto já diz a nós, numa entrevista que demorou a ceder.
Ungulani esventra as minudências do passado para falar d’ hoje, para não permitir que o passado se repita, para abrir a cortina do presente em dois dedos, para nos deixar ver ainda que em feixe o futuro que pode ser sombrio. Por isso o comboio apita. Prova ululante foi o último discurso de Ngungunhane, em “Ualalapi” (Alcance, 1987), o livro que lhe abriu o caminho. Aquele último discurso de Ngungunhane, saído daquele presente em que o livro foi publicado, continua a valer – e muito – para o nosso tempo. Mais de 30 anos depois, percebemos que estava já anunciado muito do que voltamos a encontrar neste “Assim não, senhor presidente”, estranhamente encoberto por um nevoeiro de silêncio. S’é verdade que nos nossos círculos os livros não são um produto de grande atenção, não é menos verdade que existem os livros escolhidos para serem celebrados e são sempre os que se movem na paisagem cinzenta dos temas de embalo.
“Assim não, senhor presidente” é provocativo, desde logo pelo título, uma pedra no charco de um período de que se fala com a língua travada, apenas em resmungos. É talvez o livro mais político que Ungulani tenha escrito. E talvez percebamos por que só chega a este livro agora, depois de oito livros lançados, todos os prémios literários nacionais vencidos, e de estar sentado à mesa dos big five já com os cabelos grisalhos a reivindicarem o seu tempo no cavanhaque sempre bem feito. Este “Assim não senhor presidente” aborda as iniquidades do regime samoriano e só podia ser escrito por um escritor que já atingiu a maturidade, descansado na sua Marracuene ao lado da companheira de vida que também é companheira de trabalho e assina a revisão deste livro – Salomé Pinto Sousa, longe dos sectores cooptados.
António Furtado, o personagem maior do livro, é um professor de Linguística a ser aquilo que grande parte dos intelectuais parece ter desistido de ser – a voz a questionar as directivas que em muito definem a forma que percebemos a vida nos nossos dias, o culto de personalidade que acomoda e perpetua as mesmas elites sempre prontas a castrar a voz dissonante da sinfonia em dó menor.
Nos parágrafos de grande fôlego como os nadadores de 800 metros, encontramos um tom a roçar o confessional e pensamos neste António como um alter ego de Ungulani como foi Nathan Zuckerman alter ego de Philipe Roth. Sem o assumir, Ungulani fala de uma despedida de toda uma geração que não parece ter o músculo para dar o salto para os novos tempos em que vivemos. O comboio apitou.
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